Tradutor comenta peças de Beckett

Dias Felizes. Direção de Adriano e Fernando Guimarães. Na foto, William Ferreira

Autor de “Samuel Beckett: o silêncio possível” (Ateliê Editorial, 2001), no momento esgotado, o professor da Universidade de São Paulo Fábio de Souza Andrade traduziu para a Cosac Naify as três mais conhecidas peças do escritor irlandês Samuel Beckett: “Esperando Godot”, “Fim de partida” e “Dias felizes”, publicada agora. Nesta entrevista por e-mail ao GLOBO, ele diz que Beckett foi um autor interessado pela “ambiguidade irredutível” da obra de arte, e diz que as “decifrações” de suas peças esvaziam sua força crítica e epifânica.

Como o senhor observa na introdução, há partes da obra de Beckett ainda muito pouco lidas no Brasil, certamente menos conhecidas do que essas peças. Por que o senhor quis traduzi-las? Poderia comentar as principais diferenças entre suas traduções e as versões anteriores dessas peças para o português?

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE: A obra de Beckett é vasta e variada, essencial na prosa e no palco. “Esperando Godot” e “Fim de partida”, especialmente, mas também “Dias felizes” , são obras essenciais de um período muito produtivo (os anos que se seguiram à Segunda Guerra), de muitas conquistas formais. Na narrativa, é o tempo de afirmação de uma voz beckettiana absolutamente singular, que ganha corpo na trilogia “Molloy”, “Malone morre” e “O inominável”, uma voz erudita, reflexiva e solipsista, mas em farrapos. É uma ficção povoada de personagens à margem, cujo discurso em primeira pessoa, auto-proclamado confessional, é posto sob suspeição permanente. Beckett revira as convenções do romance e, no teatro, quase ao mesmo tempo, são estas peças que marcam uma revolução análoga. Todas três tocam fundo em impasses de linguagem, impasses históricos, artísticos, filosóficos, que seguem sem resolução na experiência contemporânea. Merecem e precisam estar editadas e ao alcance de todo leitor.

No Brasil, as traduções que circularam informalmente (exceção feita à de Flávio Rangel, editada pela Abril) foram ora as pensadas originalmente para o palco, ora as portuguesas (boas, a indústria do livro portuguesa se adiantou à brasileira na recepção beckettiana, mas pedindo nova tradução, quando se pensa na língua eivada de oralidade, voluntariamente simplificada que caracteriza o autor). Cheguei às peças indiretamente, por obsessão pelo autor e por estudar sua prosa, reconhecendo as mesmas questões de fundo trabalhadas em duas frentes, o mesmo rigor musical na construção, o mesmo humor comitrágico, a mesma disposição de ocupar-se do essencial na linguagem. As traduções são um esforço de entender e apresentar uma leitura da centralidade deste esforço na literatura moderna.

Até que ponto se justifica a qualificação, feita nesta edição, de “Esperando Godot”, “Fim de partida” e “Dias felizes” como uma trilogia? Em sua opinião, quais os principais traços de união entre as peças?

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE: Trilogia não é um termo que agradasse a Beckett, apesar de sua obra ter, de fato, um caráter serial, retomando temas, vozes, procedimentos técnicos e personagens, de romance a romance, de peça a peça. O que de fato a tradução de “Dias felizes” marca é a apresentação de três peças muito representativas de uma fase essencial da criação beckettiana, não a única, certamente a mais conhecida e plataforma indispensável para nos aproximarmos da complexidade da obra final, dos ” dramatículos”, peças brevíssimas em que ficção, poesia e drama se confundem. As três compartilham traços estilísticos e temáticos. O confinamento, a mutilação, a prisão temporal em um presente eterno, infernal, a subjetividade esboroada e o corpo falimentar dos protagonistas, a auto-consciência como ameaça e o hábito, as rotinas como surdina, fazem de Vladimir e Estragon, Hamm e Clov, Winnie e Willie, pares aparentados de muito perto.

Como acontece com várias obras de Beckett, as três peças têm versões em inglês e francês. Como se deu o cotejo entre os textos durante sua tradução? Que diferenças entre eles mereceriam menção?

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE: O bilinguismo em Beckett é complexo e um assunto em si . Não se trata de autor que abandonou por circunstâncias exteriores (exílio, como Nabókov, circulação restrita, como Conrad) a língua de origem, mas escolheu abraçar outra língua além da de berço – o francês , sem abandonar o inglês. No processo de auto-tradução, Beckett se emenda, se esclarece, aumenta ou cerca a margem de ambiguidade do que escreveu antes no tempo. Assim, variam grau de humor, sugestão sonora, escatologia no trânsito do francês para o inglês. Sem renunciar ao cotejo, escolhi ficar mais próximo do texto francês, em “Godot” e “Fim de partida”, e do inglês, em “Dias felizes”, as versões que vieram cronologicamente primeiro. Como qualquer leitor, na leitura paralela das duas versões, momentos de lampejos esclarecedores e complicações semânticas se alternam, aumentando o desafio de encontrar ritmos verbais, registros dialógicos, imagens sugestivas ou equivalente culturais na língua de chegada e que funcionem no contexto de leitura brasileiro, contemporâneo. Sem apagar as marcas temporais do texto, atualizar sua leitura possível para afastá-la de qualquer sombra de exercício de museologia. O texto beckettiano permanece muito vivo e se constrói de fragmentos distanciados do discursos cotidiano.

Quais as dificuldades particulares de se traduzir Beckett? Sua economia de linguagem facilita o trabalho, ou pelo contrário impõe mais desafios ao tradutor?

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE: As dificuldades de traduzir Beckett não são propriamente linguísticas, já que ele opta por um empobrecimento e simplificação voluntárias da língua. Mas este manto de simplicidade, este proclamado estilo branco, em busca da neutralidade sem estilo, não deixa de trair suas fontes, sob forma de uma herança cultural vastísssima ecoando fragmentária, diluída na fala aparentemente muito direta de seus personagens. O cuidado com a composição, muito meditada e revista, não deixa dúvidas de que não há fios soltos na escrita beckettiana, repleta de simetrias, harmônicos, ecos que o tradutor não pode desconsiderar.

O senhor nota que Winnie representou uma novidade na obra de Beckett,sua primeira protagonista feminina, e afirma que essa escolha por uma mulher não é casual. Poderia explicar por quê?

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE: A crítica nota a misoginia de vários protagonistas beckettianos (caso de Molloy, que se refere à mãe como “velha puta unípara”), a mulher associada ao início da vida, que Beckett, leitor de Calderón de la Barca e Schopenhauer, e observador participante do século XX, qualificava como punição e sofrimento. Mas Beckett era um observador fino da psiquê feminina: a voz de “Não eu”, a May/Amy de “Footfalls” (“Passadas”), e a própria Winnie são figuras cuja experiência é humana, mas que guardam especificidades de gênero irredutíveis (da mesma forma que um encenador brasileiro que conhece a fundo Beckett, Rubens Rusche, diz reconhecer um traço singularmente masculino na camaradagem de Didi e Gogo). O otimismo em situação hostil, a loquacidade inesgotável, a leveza aprisionada são traços que Beckett pensava em Winnie como especificamente femininos.

Pela própria força sugestiva das situações que encenam, as peças de Beckett foram e continuam a ser muitas vezes lidas de maneira alegórica.Como o senhor vê esse tipo de abordagem da obra de Beckett?

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE: A alegoria é uma tentação na obra de alguém que, apesar de ter escrito sob o lema do “no symbols where none intended” (nada de símbolos onde não foram pensados, ou nada de símbolos a não ser os intencionalmente inseridos), sempre explorou o caráter não conceitual da arte, sua ambiguidade irredutível, sua capacidade de conter em si as tensões, a “mess”, desordem e caos do mundo, sem ordená-los à força. Como Beckett se abre a múltiplos extratos – linguísticos, históricos, estéticos de uma experiência em si já complexa (a do homem do século passado, a um só tempo breve, acelerado e terrível), as imagens que esta obra oferece à interpretação não poderiam ser unívocas. Aprisionar a leitura a uma única destas dimensões é diluir seu potencial crítico e perturbador, epifânico.

Em que medida o contexto histórico da época em que Beckett escreveu “Dias felizes” é importante para compreender a peça? Por que, em sua opinião, Beckett suprimiu as referências a acontecimentos externos que constavam do texto inicialmente?

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE: Não se deve ao esforço de biógrafos ou à publicação da correspondência pessoal a convicção cada vez maior de que a história contemporânea é essencial à compreensão da importância da obra beckettiana. A falência da linguagem, matéria e forma de seu teatro tanto quanto de sua ficção, tem uma marca de atualidade inequívoca, traduzida nos cacoetes analíticos e existenciais, no tédio e no caráter tortuoso que razão e comunicação humana assumem em sua escrita, vazada em uma linguagem feita de impasses e paradoxos. O poder de estranhamento e revelação que assim entranhada na forma a história moderna assume é muito mais contundente que seu tratamento referencial. Espectador e leitor se reconhecem na linguagem e na perplexidade das criaturas beckettianas, em seu otimismo sem fundamentos, que insiste em continuar contra todas as chances.

Fonte: Jornal “O Globo”.

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