Beckett no Brasil

 

Samuel Beckett

A presença de Samuel Beckett no Brasil, no centenário de seu nascimento, comemorado em 2006, pode ser atestada pela tradução recente de duas de suas obras principais: Fim de partida (Cosacnaify, 2002) e Esperando Godot (Cosacnaify, 2005). Assina ambas o professor da USP e crítico literário Fábio de Souza Andrade, que discute Beckett e sua importância na entrevista abaixo, concedida a Sérgio Medeiros.

Você é responsável pela tradução de duas das peças mais importantes de Beckett, “Esperando Godot” e “Fim de Partida”. Qual das duas é hoje a mais profética, a que revela melhor a nós mesmos o mundo contemporâneo?

“Falhar, falhar melhor”, o mote sob o qual a obra beckettiana se desenvolveu, sugere uma continuidade – temática, e o tema somos nós, a contemporaneidade – conduzida por um rigor construtivo que se concretiza num percurso de adensamento progressivo. Formalmente, as duas são igualmente desconcertantes, seja pela estranheza, seja pelo grau de acabamento estético (da ordem da ruína e do fragmento). A novidade que “Godot” representou no teatro moderno segue presente em “Fim de partida”, mas a capacidade de ferir se acentua na segunda, Beckett mesmo diz assim. Pessoalmente, o humor mais acre de “Fim de partida” me fala mais de perto.

Você já foi encenado, quero dizer, sua versão de Beckett já foi levada aos palcos. Poderia comentar o que mudou no seu texto, nessa passagem do livro para o teatro?

Também no caso do teatro beckettiano Beckett, em que pese o mito do controlador que se criou em torno dele como autor, cada montagem agrega as escolhas e lampejos, erros e acertos, do seu tempo e das pessoas envolvidas. Quando reescrevia o texto em português, a preocupação era recriar o espírito de uma língua musical, mas simples, alusiva sem aparato, falas que coubessem no ouvido interno dos leitores e na boca dos atores. Mas não sou homem de teatro e nem teria como levar em conta as dificuldades técnicas que a encenação coloca, só pressentir. Fiquei satisfeito com o que ouvi dos diretores que se serviram da tradução – que ela funciona no palco-, tanto o René Piazentin (que levou “Fim de partida”), quanto Gabriel Vilela, que montou o “Godot”.

Você tem um importante estudo crítico sobre Beckett, “Samuel Beckett: o silêncio possível”. Dentre os teóricos que você utiliza, Blanchot parece não convencê-lo muito, se considerarmos seu comentário à leitura que ele fez de “O inominável”. No que consiste seu “desacordo” com o autor de “O livro por vir”, recentemente lançado no Brasil?

Blanchot é um crítico inspirador, crítico-escritor que seduz pelo estilo e pela inquitação filosófica. A crítica que pode se fazer a ele – e também a assino – é a de que o feitiço deste estilo pode fazer soar a obra de autores tão diversos como Hugo von Hofmannsthal e Beckett mais próximos do que de fato são. No caso particular de Beckett, esta crítica tende a se tornar mimética, aderir tanto ao objeto que carece de recuo para dar um salto interpretativo: a verdade histórica e a atualidade da obra ficam parcialmente obscurecidas pelo encantamento.

Quando o leitor termina seu livro sobre Beckett, ele fica querendo mais e se pergunta quando virá a segunda parte, que tratará especificamente da produção do último Beckett. Quando virá esse segundo volume?

Ando preocupado com as repercussões brasileiras da obra beckettiana, tão enfronhada na tradição européia e sua saturação, tão ligada às catástrofes do século passado: como ela repercute entre nós, ocidentais periféricos, um pouco à imagem dos irlandeses? Não penso na história das montagens brasileiras (o que também seria um assunto curioso), mas nas apropriações do prosador. Para pensar o assunto, o mergulho na obra final é importante. Minha hipótese incipiente é a de que a forma breve do Beckett final e a instabilidade extrema do sujeito, do foco enunciativo do texto são o que maior apelo e liga tem com a experiência brasileira contemporânea. Assim, a reflexão sobre a produção tardia tem se enredado nesta questão brasileira, espinhoso complicador, e fica adiada até o cipoal amansar.

O texto importante de Adorno sobre “Fim de Partida” não está disponível em português, ao que me consta. Sabemos que Adorno é uma referência importante para você como crítico de arte e literatura. No referido ensaio, Adorno fala de “estado pós-psicológico”, ao aludir aos corpos entrevados, cegos de Beckett. Parece que esse estado corresponde estado “absurdo” de pessoas velhas e de vítimas de tortura, não ao estado dos burgueses do romance realista. Poderia comentar esse aspecto importante da estética beckettiana?

Adorno insiste no caráter de mimese em segundo grau que constrói a obra beckettiana. O elemento estranhador dos velhos descartáveis, existências mutiladas e arquivadas em latas de lixo, displicentemente dispostas na sala, não deveria encobrir a familiaridade da razão tortuosa que as move, produto lógico da ordem moderna. A desmontagem da tradição novecentista do realismo formal é elemento importante da obra beckettiana, mas contra Lukács, Adorno busca demonstrar que esta nova forma, construção de ruínas, é o refúgio do verdadeiro realismo crítico.

Felizmernte, já temos em português uma versão integral de “Como é”. Poderia comentar esse texto, escrito à beira do esgotamento criativo, como opinam os críticos e os biógrafos do escritor irlandês?

A prosa beckettiana é parte tão importante de sua produção quanto o teatro. No Brasil, tínhamos a tradução da trilogia do pós-guerra (“Molloy”, “Malone morre” e “O inominável”), uma edição de “Companhia”, como representante solitário da fase final, um ou outro conto, mas não a visão do arco contínuo deste desenvolvimento que se faz a custa da troca de impasses. “Como é”, traduzido e estudado por Ana Helena Souza, é estação importante neste desenvolvimento, ponto de inflexão em direção à concisão e complexidade sintática máximas da obra final. Estão lá os pares beckettianos, companheiros-torturadores inseparáveis, um do outro; os estertores do paradigma da viagem (“meus personagens nunca estiveram a caminho de lugar algum, mas sempre a caminho”), tocada de expulsão a expulsão. A tradução supre lacuna essencial.

O textos curtos de Beckett, como aqueles que compõem a sua última trilogia, mas não só esses, são inclassificáveis e parecem misturar, em alguns casos, prosa, teatro e cinema, às vezes numa atmosfera de ficção científica. Infelizmente eles não estão disponíveis em português. Sabe se serão traduzidos?

Há planos de mais de uma editora, mas os progressos são lentos como o dos avanços das personagens beckettianas. De qualquer modo, são bons sinais a reedição recente de “Malone morre”, na tradução de Leminski, pela Códex, de “Como é”, pela Iluminuras, do texto sobre “Proust” e “Primeiro amor”, pela Cosac Naify. Em breve, as “nouvelles” do pós-guerra sairão pela Martins Fontes e espera-se reedição de “Molloy” e “O Inominável”. Enquanto isto, devemos nos contentar com as traduções portuguesas de Miguel Esteves Cardoso, que para leitores brasileiros tem um sabor a mais numa escrita do menos, que se ocupou da trilogia final, e aguardar.

Tenta-se vender hoje a imagem de Beckett como o “santo da literatura” (Harold Bloom chama-o assim). Um escritor impecável em todos os sentidos. Irrepreensível também no campo político. Algo a comentar?

Não imagino que o gosto de Beckett se inclinasse para os santos e sua obra vence qualquer curiosidade que a biografia (de fato, movimentada e interessante) possa ter. Mas, enfim, figuras tão incontestavelmente grandes escasseiam e os mitos se fazem sem pedir licença (o que não significa que devamos embarcar neles ingenuamente). De Beckett, o melhor são as palavras.

 

Fonte: http://www.centopeia.net. O entrevistador foi Sérgio Medeiros, que é autor do livro de poesia Alongamento (ateliê, 2004), entre outros, e ensina literatura na UFSC.

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